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Pena & Tinta: As Quatro Estações - Feito Poesia

Pena & Tinta: As Quatro Estações

2.5.15



O nome dela era Alisha; a mulher que nunca voltou. Morava sozinha na casa ao lado da minha e tinha o jardim de janela mais bonito da vizinhança, com flores azuis que desafiavam o rigoroso frio do inverno e o calor extenuante do verão e permaneciam imaculadas o ano inteiro. Naquele época, eu ainda era só um menino que brincava com bolas de gude no meio da rua e pouco sabia sobre Alisha. Ela era o mistério que não estava ao meu alcance.

Mas os vizinhos comentavam. Diziam que era estrangeira e que veio parar nas terras do norte fugindo da guerra no sul. Outros diziam que era uma bruxa. Uma espiã. A verdade é que quem era Alisha não importava; só importava descobrir como aquela mulher conseguia ter um jardim para o qual as estações pareciam nunca existir. E a isso Alisha sempre respondia do mesmo jeito: amor.

Decepcionados, os vizinhos voltavam às suas casas e paravam de importunar Alisha com suas perguntas. Respostas, porém, não aparecem para os que perguntam, mas para os que observam e, um dia, quando levantei da cama bem cedo para procurar uma de minhas bolinhas que tinha se perdido na rua, flagrei Alisha colher cinco ou seis flores do seu jardim e, em seguida, tomar o caminho da estação de trem. Era o primeiro dia da primavera, e Alisha só voltou ao anoitecer.

Durante os anos seguintes, notei que o ritual se repetia todo começo de primavera, até que na primavera de 54, Alisha colheu as flores, saiu e nunca mais voltou. Desapareceu como um mistério que não valia a pena ser solucionado. A casa permaneceu trancada, mas o jardim continuou florindo, mesmo quando às vezes algum vizinho esquecia de regá-lo. Minha família se mudou um tempo depois, e Alisha se tornou apenas uma memória distante.

É outono agora. Quarenta anos se passaram e nada se parece como antes, a não ser o jardim de Alisha. Ouvi boatos sobre um jardim que não desflorescia e voltei a minha rua de infância para ver com os meus próprios olhos e ali está ele, todo azul. A casa de Alisha está abandonada, musgo e mato crescem ao redor, mas o jardim embaixo da janela continua sorrindo. Como se soubesse de um segredo prestes a ser revelado. Percebo também que agora há um in memoriam gravado na parede em que o jardim se sustenta. Dois nomes, quatro datas. O nome de Alisha é um deles, e a data de sua morte remete àquela primavera de 54. Me sinto imediatamente triste, mas então uma jovem se aproxima de bicicleta, sorrindo, e me conta tudo. Ela começa por dizem...

Dizem que ele foi para a guerra, mas que prometeu que voltava na primavera. Ao que ela o abraçou forte e sussurrou que então, quando ele voltasse para ela, o jardim estaria florido. Dizem que ele não voltou e ela teve de fugir para o norte. Levou apenas as mudas do jardim para honrar aquele último diálogo. Dizem que o jardim da antiga casa deles também não desfloresceu e que as flores estão aguardando o momento em que o casal poderá se reencontrar, mesmo que em outra vida.

A jovem termina de contar e vejo como ela está emocionada e se sente bem em passar adiante aquela história. Intimamente também me sinto bem. Olho para o jardim da janela e me lembro de Alisha ali, solitária e esperando, mas sempre a sorrir quando lhe perguntavam como o jardim resistia ao passar das estações. Alisha sempre respondia a mesma coisa. E ela sempre esteve certa.

Pena & Tinta é um projeto de escrita criativa com o objetivo de criar textos (crônicas, contos, poesias, relatos pessoais etc) mensalmente em cima de um tema predeterminado. O tema de abril foi As Quatro Estações, e se você quiser participar, é só acessar o grupo no Facebook :)

Visite também:
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11 Bilhetes

  1. Ticilinda, que texto maravilhoso <3 Não sei nem o que comentar, apenas sentir, hahahaha!

    Beijos,
    http://www.girlfromoz.com.br/

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  2. Que amor de texto! Lindo como você consegue colocar vários sentimentos, de mistério à amor, numa só enredo. Bem que eu queria um jardim que resistisse ao passar das estações, hahaha.

    Beijão!
    http://surmelody.blogspot.com.br/

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  3. Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa Gritando pela perfeição desse texto!!!! Você precisa voltar a escrever NOW! Com essas poucas linhas eu já fiquei super presa e morrendo de vontade de saber o que aconteceu! Já quero livro (ou uma conto mais longo) sobre a história Alisha, porque minha curiosidade é insaciavel e preciso saber o que aconteceu que ela não voltou mais! E meu coração chega se apertou de com tamanha beleza de o jardim continuar sem pre florido! ARRASOU no texto, sis (acho que já disse isso, mas não custa repetir hehehe)
    Beijoooos <3
    Debora.
    http://vanille-vie.blogspot.com.br/

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  4. Xonei no texto! Muito sensível e delicado <3 talento pra isso, apenas. Hahahahh

    E eu AMEI o layout novo! Ficou demais.

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  5. Que texto lindo. Me emocionei agora. Parabéns! Fiquei querendo ler uma história inteira com esses personagens.

    Blog Prefácio

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  6. Oi Tici,
    Nossa o novo layout está maravilhoso! *.*

    E o texto mais lindo ainda, o amor da Alisha era tão forte quanto o florescer das flores ♥

    bjs e tenha uma deliciosa semana
    Nana - Obsession Valley

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  7. Ticinha que lindo texto!
    Foi muito tocante lê-lo, não conhecia esse projeto, estão de parabéns, me passou muita emoção e sentimento!
    Beijos
    http://overdoselite.blogspot.com.br/2015/05/resenha-o-outro-lado-da-memoria-o-amor.html

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  8. Que texto perfeito! Uma cadencia suave, faz desacelerar... Como só um bom "Era uma vez..." consegue. Parabéns, eu amei!

    Pandora
    O que tem na nossa estante

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  9. Que texto mais maravilhoso, Tici, tô encantada <3 Eu fiquei imaginando cada cena narrada a medida que fui lendo, e amei a ambientação e o contexto que você deu aos fatos.
    Com tanta gente talentosa assim, o Pena & Tinta só tende a crescer e encher a blogosfera de texto lindo.
    Beijo

    www.blogrefugio.com

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  10. Excelente conto, acho que o melhor que você fez até agora no blog. É bem construído, sensível, contido (no sentido de que não tem palavras desnecessárias). Espero que você continue escrevendo assim por aqui.

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  11. Carol, Denise, Debora, Belle, Sil, Nana, Paula, Pandora, Cecília e Raphael: Muito obrigada por terem lido o conto e pelas palavras lindas de vocês! <3 Espero que o Pena & Tinta possa ser tão bom para quem escreve quanto para quem lê os textos também! *-* Obrigada, de novo!

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